Você já assistiu ao filme Parasita? O longa do diretor coreano Bong Joon Ho surpreendeu a todos ao levar a estatueta de Melhor filme do Oscar em 2020, se tornando o primeiro filme de língua não inglesa a ganhar o prêmio. Em Parasita, toda a família de Ki-taek está desempregada, vivendo em um porão sujo e apertado. Uma obra do acaso faz com que o filho adolescente da família comece a dar aulas de inglês à garota de uma família rica. Fascinados com a vida luxuosa destas pessoas, pai, mãe, filho e filha bolam um plano para se infiltrarem também na família burguesa, um a um. No entanto, os segredos e mentiras necessários à ascensão social custarão caro a todos.

É um filme intrigante, cheio de simbolismos e que aborda de maneira chocante a desigualdade social e a busca por ascensão social. Para nos dar essa percepção de abismo social vários recursos foram usados pelo diretor: como iluminação, enquadramento e cores.

A arquitetura também foi um ponto crucial na simbologia da trama. Tanto é que foi tema de um estudo realizado pelo arquiteto Carlos Alberto Maciel, sócio fundador do escritório Arquitetos Associados. Nele são abordados aspectos arquitetônicos importantes usados pelo diretor para ilustrar, com muita precisão, a oposição que há entre o modo de vida das duas famílias retratadas no longa. Continua a leitura e veja cada um deles.

Entre o Confinado e o Aberto

A primeira abordagem apontada por Maciel em seu estudo é denominada por ele de “Entre o Confinado e o Aberto” onde aponta a diferença entre a casa da família rica e da família pobre pela ótica da janela. “Enquanto uma é praticamente um porão, dispondo apenas de uma janela suja e embaçada que fica ao nível da rua, dando a ideia de um espaço confinado. A outra é uma casa luxuosa, muito ampla, toda envidraçada, onde há uma extensão visual da janela”, disse Carlos.

Esse aspecto também pode ser visto, segundo o arquiteto, no aperto dos espaços, na congestão dos objetos, de elementos, e na desordem dos ambientes para gerar a sensação de lugar pequeno, de desconforto a quem assiste. “Diferente da outra onde a casa mais aconchegante, ordenada, arejada passa a ideia de conforto”, apontou Maciel.

Cena Parasita 2019

Cena Parasita 2019

Outro tópico abordado por Carlos e que, para ele, é essencial para a ideia de todo o trabalho de construção dos espaços do filme, é a diferença entre o “Alto e o Baixo”. A casa da família pobre, para reforçar a ideia de que está enterrada no chão, é muito baixa a ponto dos moradores conseguirem olhar pela janela e ver o nível do chão da rua. Em oposição, a casa da família rica é magnífica, alta, aberta, envidraçada, onde se tem uma vista extensa da paisagem. “Enquanto uma casa está enterrada, a outra se eleva, inclusive geograficamente. Enquanto uma está na parte alta da cidade, a outra está no ponto mais baixo. Na casa semienterrada, eu chamo a atenção para o vaso sanitário que revela o quanto aquele espaço é um porão, pois ele é colocado no alto, quase ao nível da rua, para permitir a conexão com a rede de esgoto. Essa experiência, portanto, vai sendo radicalizada em todas as cenas como a vista que os quartos da parte de cima da casa rica tem, ou a luz quando mostra o porão para enfatizar a ideia de lugar sombrio, até chegar no bunker que é esse lugar misterioso”, observou o arquiteto.

Intimidade e Exposição

A diferença entre intimidade e exposição é outro ponto levantado por Maciel. “Acho que esse é um tema arquitetônico muito importante, a construção da privacidade dentro de um espaço doméstico. O diretor explora isso de modo muito preciso. Na casa rica é possível ter uma visão ampla do jardim, mesmo dos ambientes mais íntimos como os quartos, porém fica claro que esses cômodos são íntimos, não se perde a privacidade. Já a casa baixa tudo é visto pela janela, interferindo na rotina da casa. Não há um limite entre o fora e o dentro, ou seja, existe ali uma certa mistura entre o domínio da cidade e o domínio da casa e esses espaços de privacidade não são construídos, então existe uma exposição muito impactante da intimidade para a cidade. Isso se dá muito pela disposição espacial pois geralmente quem está em cima tem um grau de privacidade maior do que quem está em baixo”, explicou Carlos.

Outro recurso usado por Bong Joon Ho, apontada pelo arquiteto, se dá entre a desordem e a ordem. Enquanto a casa luxuosa é organizada, disposta de modo ordenado, padronizada, geometricamente pensada, a casa enterrada é desordenada, com objetos espalhados, jogados, sobrepostos, sem nenhum padrão e tumultuada. Há ainda uma contraposição entre a estética do liso que está presente na casa rica o tempo todo, em oposição a outra casa, um lugar sujo, que não é liso, que não tem a pureza estética. “Essa ideia aparece nas paredes, no espaço da cozinha, no quarto da criança que, embora repleto de coisas, parece estar precisamente ordenado. Diferente da outra que tem uma cozinha tumultuada, onde as coisas estão empilhadas pela falta de espaço, são espaços que não são funcionalizados e se coloca uma coisa em cima da outra”, elucidou Maciel.

Cena Parasita 2019

Cena Parasita 2019

Brilho e Opacidade

O arquiteto aponta um aspecto muito presente no filme, o Brilho e Opacidade. Existe uma exploração muito precisa desse lugar onde a satisfação é associada ao brilho, a transparência, a luminosidade, com uma profundidade visual, enquanto o sofrimento está condensado em uma imagem chapada e escura, com pouca profundidade.” O uso da luz técnica, que é uma luz que resolve a funcionalidade imediata do espaço, e o diretor usa isso intencionalmente para caracterizar esses espaços sem glamour como o porão e a casa semienterrada, contra essa luz estética, com luminárias e luzes direcionadas que representa o glamour e a ostentação”, assinalou Carlos.

A construção do espaço urbano foi mais um ponto discutido pelo arquiteto em um tópico denominado de “Entre a Congestão e o Deserto”, aqui o profissional aborda a diferença entre uma cidade planejada, onde observa-se espaços urbanos vazios, pouco movimentados, e do outro lado o não planejado, a metrópole viva, efervescente, agitada. “Na cidade e na arquitetura há essa limpeza da aparência vazia dos espaços urbanos, por outro lado há uma cidade que se constrói por si mesma, que não tem ali um planejamento, não tem a presença de um sujeito que define um desenho e que a vida vai tomando lugar e vai se construindo seja na informalidade da moradia, seja na informalidade do trabalho, seja na precariedade do espaço urbano, uma imagem que poderia estar em Belo Horizonte ou em Porto Alegre, poderia estar em qualquer lugar e a gente vai vendo se desdobrar nos percursos, nas ações dos personagens ao longo do filme”, esclareceu Carlos.

Entre o Hedonismo e a Tragédia

Nesse tópico, Maciel levanta um ponto crucial da arquitetura e um dos problemas em que os arquitetos são mais cobrados e, muitas das vezes, pouco eficazes na resolução que é o trato com a água. “Há um certo status na água da banheira, da irrigação dos jardins magníficos, da chuva que pode ser vista com total conforto e segurança de dentro da casa da família rica, já essa mesma água passa a ser o objeto da tragédia quando a enxurrada que escorre da parte alta alaga a casa enterrada, seja por falta de infraestrutura urbana que faz com que a chuva inunde esses locais, seja pela posição geográfica da própria casa que vira uma piscina de água e esgoto. E o diretor traça muito bem esse paralelo entre o Hedonismo e a Tragédia mostrando que o mesmo objeto, no caso a água, pode ter impactos diferentes conforme a nossa habilidade de lidar com ela”, ilustrou o arquiteto.

Cena Parasita 2019

Cena Parasita 2019

Entre o Privilégio e a Vida Nua

Maciel finaliza levantando uma análise sob a ótica de Giorgio Agamben, que fala da “Vida Nua” como uma experiência de desproteção de uma pessoa que está acuada no lugar vazio e que, no fim das contas, está submetido a viver num estado de opressão. Muito diferente da posição de privilégio da família que mora em uma casa segura, confortável, aconchegante e ampla. “É um filme que fala da inviabilidade do contemporâneo, da inviabilidade desses dois mundos Talvez essa oposição está na base de algo que denota uma curta inviabilidade dos dois mundos, não como um a favor do outro, mas uma inviabilidade que se confronta. Pois me parece que uma das questões que está na base de tudo isso é exatamente a ideia de uma sociedade do cansaço, a ideia do desempenho excessivo que está colocado ali naqueles dois lados e fica um tipo de exaustão, o que leva a tragédia”, concluiu Carlos.